domingo, 23 de março de 2014

AS AGUAS.....


amo as águas no instante em que não são do rio 
nem ainda pertencem ao mar 
árduas planícies rosto incendiado pesando-me nos ombros 
hirto... tatuado no entardecer de magoada cocaína

leio baixinho aquele poema Eu de Belaflor 
nocturna sombra do corpo embriagado 
fogos por descuido acesos no humido leito de juncos 
altíssima margem...inacessível noite de Florbela
e o soneto dizia:

“Sou aquela que passa e ninguém vê 
Sou a que chamam triste sem o ser 
Sou a que chora sem saber porquê”

apesar de tudo conheço bem este rio 
e o cuspo diáfano do coral o sono letárgico 
os ternos lábios das grandes bocas fluviais

sinto o rigor das plantas erectas as vozes esparsas 
os corpos de ouro enleados na violência das maresias 
junto à foz de meu insegura desaguar... continuo sentado

escrevo a desordem urgente das horas... medito-me 
cuidadosamente o tabaco amargo pressente-te na garganta 
e no fundo inóspito do corpo desenvolve-se 
o desejo de fugir

espero o cortante sal-gema das ilhas... a ilusão 
de me prolongar na secreta noite dos peixes 
adormeço 
para que estes dias aconteçam mais lentos 
nas proximidades inalteráveis deste mar....

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